Grande imprensa e mídias sociais na polarização do discurso político no Brasil

Luciano Bitencourt :: professor de Jornalismo e de Publicidade e Propaganda

El País Brasil e Folha de São Paulo protagonizaram em 26 de abril a primeira entrevista do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva depois de mais de um ano de prisão. Para Carolina de Paula, doutora em Ciência Política, as declarações de Lula não tiveram repercussão expressiva na grande imprensa. A Globo e a Record, duas emissoras que concentram a maior parte da audiência de TV no país, não deram qualquer registro a respeito. O desinteresse pode ter razões editoriais, uma vez que os dois veículos não foram priorizados por Lula. Mas, no caso da Globo, há indícios de que os jornalistas tenham sido “recomendados” a não tratar do tema por não haver novidades que justificassem sua repercussão. A emissora negou a “recomendação”, mas não explicou as razões de não ter abordado a entrevista em seus noticiários.

Segundo análise da Bites, empresa especializada em “inteligência analítica” no universo digital, a partir de dados coletados nas mídias sociais, a entrevista ampliou o número de seguidores de Lula, mas o maior beneficiado foi o presidente Jair Bolsonaro. O levantamento se apoia em números, sem uma avaliação qualitativa das interações. Para se ter uma ideia, em sete dias do mês de setembro do ano passado, Bolsonaro havia sido o candidato mais citado por bots no Twitter durante a campanha eleitoral. Os bots são programas de computador que executam tarefas automáticas a partir de algoritmos e têm sido comuns na condução de debates políticos nas mídias sociais.

De acordo com o InternetLab, centro de pesquisa interdisciplinar em direito e tecnologia, há a estimativa de que os bots atuam no campo político brasileiro desde 2011. Mas os “mecanismos que inflam artificialmente a audiência” na rede são mais evidentes desde as eleições de 2014, passando também pelo processo de impeachment além dos pleitos eleitorais. Esses aspectos expressam um cenário político-midiático em que as tensões ampliam as perspectivas de polarização e fragilizam ainda mais a sedimentação de uma cultura política democrática no país.

Estudo da Diretoria de Análise de Políticas Públicas, da Fundação Getúlio Vargas, evidencia que, entre 22 de setembro e 21 de outubro do ano passado, as informações falsas que mais circularam no Twitter foram a suposta fraude nas urnas eletrônicas (1,1 milhão de tuítes) e o ‘kit gay” (1 milhão de tuítes). O debate sobre as eleições foi mobilizado nas redes em função da desconfiança na lisura do processo eleitoral, com 841.800 tuítes em um mês, entre agosto e setembro. Uma breve pesquisa no Google mostra que, no mesmo período, um dos temas que mais mobilizaram a grande imprensa foi a presença da Organização dos Estados Americanos (OEA) para acompanhar a lisura do processo eleitoral.

Depois da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e da campanha pela saída da Grã Bretanha da União Europeia em 2016, percebe-se que a circulação de informações falsas e o discurso de ódio cresceram exponencialmente. No âmbito da imprensa, as mídias sociais impactaram de diferentes formas. Uma, contudo, parece mais relevante: a partir da circulação ágil de informações, muitas delas sem o devido cuidado de apuração, os jornalistas parecem ter perdido o domínio editorial na escolha do que publicar. Ou, pelo menos, se vêem envolvidos num ambiente que estende as redações, seja na busca de pautas ou na apuração das informações.

O Columbia Journalism Review analisou mais de 1,25 milhões de reportagens publicadas na imprensa estadunidense e concluiu que, entre 01 de abril de 2015 e o dia da eleição (08 de novembro de 2016), a cobertura girou em torno de temas que a agenda da direita estabeleceu, especialmente sobre a questão da imigração. No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro tem se pronunciado mais pelas mídias sociais do que pelos veículos tradicionais da mídia noticiosa, mantendo a estratégia de campanha eleitoral do ano passado. E em canais próprios tem procurado desmoralizar o trabalho da imprensa, tratando como “fake news” todas as informações que não condizem com o que ele diz ser a verdade.

Um parêntese: o termo “fake news” tem se consolidado pelo descrédito do jornalismo e suas formas de fazer circular a informação, descrédito este aliado aos modos de interação e comunicação digitais que dispensam a tradicional mediação de produtores especializados. Mas não se pode negar que a emergência do termo ganha amplitude quando usado por políticos para desqualificar um serviço público cujo compromisso essencial é fiscalizá-los ou quando usado pela própria imprensa para desqualificar concorrentes.

À exemplo dos Estados Unidos, a imprensa brasileira tem se pautado pelas estratégias de comunicação do governo em suas mais variadas instâncias. As ideias conservadoras ganham espaço na mídia, mesmo quando refutadas por críticas mais severas. Percebe-se que Bolsonaro, através de suas redes sociais, ocupa posição relevante no ecossistema de mídias e tem mobilizado a seu favor um grande contingente de seguidores. A imprensa, via de regra, repercute pronunciamentos feitos em canais próprios do presidente e do governo. Em contextos assim, as crenças tendem a se sobrepor à análise de fatos objetivos.

Segundo o jornalista inglês Matthew D’ancona, em seu recente livro sobre a pós-verdade, o descrédito das instituições, os debates pautados em contra informação para gerar dúvida quanto à verdade baseada em evidências, a propaganda transformada em fatos para persuadir e manter em andamento discussões sem preocupação com a veracidade  são estratégias que contribuem para que o conceito de pós-verdade ocupe o espaço oferecido pelos dispositivos digitais para ampliar sistemas de crença de grupos específicos.

D’ancona enfatiza que a “franqueza” política, característica valorizada por eleitores de Trump e Bolsonoaro, não significa, no atual contexto, “falar a verdade”. Basta a quem fala, falar o que pensa. O fato novo no imaginário político atual são, segundo ele, a indiferença e a consequente conivência dos eleitores em relação aos discursos de seus representantes. Como o discurso público tem provocado um “hiato entre retórica e realidade”, a verdade perde o sentido de descoberta e passa a representar a mera divulgação de si mesma, como se todos esperássemos por ela sem a necessidade de esforço para alcança-la.

A entrevista de Lula e as declarações de Bolsonaro ganham, no imaginário político produzido entre a abstenção da grande imprensa e a força de mobilização passional das redes digitais, um sentido muito parecido, ainda que tenham razões e graus de profundidade muito diferentes. Ambos representam espectros antagônicos no sistema político e consolidam esse imaginário através da mídia. Não por acaso.

Mídia concentrada e deserto de notícias

No Brasil, o sistema de mídia e o sistema político se confundem. O centro das decisões políticas coincide com o centro de construção de um imaginário pautado pela homogeneidade de ideias e de vozes a respeito de temas importantes para a formação de uma cultura democrática. Destacamos dois aspectos que sustentam essa hipótese. O Monitor de Proprietários de Mídia no Brasil, projeto mantido pelo Coletivo Intervozes e pela organização Repórteres Sem Fronteira, levanta indicadores de alto risco à pluralidade da mídia no Brasil, a partir do mapeamento de veículos de maior audiência.

O levantamento indica “alerta vermelho” no que diz respeito às condições para que a diversidade de informações e pontos de vista sustente um sistema político democrático. Cinquenta veículos de rádio, TV, impressos e online foram analisados e mostram um sistema de mídia que se caracteriza pela “alta concentração de audiência e de propriedade”, “alta concentração geográfica”, “falta de transparência” e alta “interferência econômica, política e religiosa”. Os 50 veículos analisados pertencem a 26 grupos de comunicação.

grupos de midia analise MOM

Para se ter uma ideia, os quatro principais grupos (Globo, Silvio Santos, Record e Bandeirantes) somam 71,1% da audiência em TV aberta, segundo dados do Kantar Ibope de 2016. Em função da eleição de Bolsonaro e sua preferência por Record e SBT, é possível que haja mudança nos índices de audiência entre os grupos. Mas os quatro ainda permanecem entre os maiores do país e, somados, mantêm a maior concentração de audiência. Só o Grupo Globo, por exemplo, chega a 43,86% da soma ponderada de audiência em seus diferentes veículos, isso sem levar em consideração sua participação na internet, o que exemplifica a alta concentração de propriedade cruzada no sistema de mídia.

Sem dispositivos legais que dêem transparência à essa concentração de propriedade é muito difícil estabelecer um controle que permita uma diversificação de veículos e a representatividade de diferentes estratos sociais de forma paritária na mídia. A alternativa tem sido a chamada “mídia independente”, mais engajada politicamente e próxima de grupos não representados pela via tradicional. É um campo legítimo no processo de comunicação, mas, além de não concorrer com a grande imprensa, tem reforçado, por suas características, a ideia de que produz informações distorcidas e ideologizadas pela defesa de pontos de vista menos conservadores.

Quanto à concentração geográfica, outro projeto nos ajuda a entender o cenário político-midiático polarizado. O Atlas da Notícia, realizado pelo Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor) em parceria com a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), faz o mapeamento do jornalismo local em todo o país, com o propósito de identificar o que designa como “deserto de notícias”. Segundo o levantamento, atualizado em janeiro de 2019, 51% dos municípios brasileiros não possuem sequer um veículo noticioso que apure informações de interesse local. Isso atinge 30 milhões de pessoas. Se acrescentarmos ao cálculo os municípios com um ou dois veículos, os “quase desertos de notícia”, somam-se mais 34 milhões de pessoas sem acesso a informações diversificadas sobre os temas que as afetam diretamente.

Os veículos estão aglutinados em centros urbanos, com um alto grau de dependência de rádios e jornais. Os dados mostram que cerda de 80% dos municípios brasileiros (4.508) vivem em desertos ou quase desertos de notícias. Em termos populacionais, entretanto, são 64 milhões de pessoas, o que representa cerda de 31% do total no país. Os municípios menores tendem a não ter cobertura satisfatória, especialmente no Norte e no Nordeste.

Os “desertos” ou “quase desertos de notícia” verificados pelo Atlas são presas fáceis para a circulação de desinformação, arma política bastante frequente nos dias de hoje, especialmente em grupos específicos de redes sociais. Reportagem de Ana Terra Athayde para o Observatório da Imprensa mostra que a Cidade Ocidental, a 50km de Brasília, um dos municípios considerados desertos de notícias, não tem opções de informação oriunda de procedimentos jornalísticos de checagem e apuração e que as redes sociais ocupam espaço nesse processo.

O cenário político-midiático brasileiro faz transparecer que a excessiva concentração político-econômico-geográfica da indústria da mídia e a falta de ambiente para a circulação mais diversificada de informações são fatores a considerar quando tratamos do discurso público, especialmente os protagonizados por figuras políticas representativas como Lula e Bolsonaro. Entre o apagamento de Lula na grande imprensa e o uso estratégico das mídias sociais por Bolsonaro, o debate político tem se polarizado em função dos meios pelos quais a circulação de informações relevantes deveria ser prioridade. Central no debate político contemporâneo, a mídia assume papel de protagonismo no campo da própria política. Não por representar um espaço público nas sociedades modernas, mas por negligenciar justamente o valor de uma cultura política democrática.

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